Análise de arte, desenho de Rodolfo Carvalho
- Matheus Gansohr Psicólogo Clínico | Junguiano
- 25 de ago. de 2017
- 7 min de leitura

Trabalho que em parceria com o artista plástico Rodolfo Carvalho!
Introdução:
Feita a primeira versão quando o autor tinha 13 anos e a segunda feita 21 anos depois, a arte possui como elementos que a compõem uma serpente atravessando um crânio, ao lado esquerdo uma fogueira e a direita um rato, um osso e ao fundo um abutre, tudo isso sob um céu noturno de lua cheia e montanhas rochosas que a primeira vista pode-se imaginar uma ilustração que possivelmente estaria compondo o cenário de uma revista em quadrinhos ou uma capa de disco de rock/heavy metal, mas o cenário ilustrado pode oferecer mais elementos da psique através dos conteúdos simbólicos presentes, pessoalmente a primeira impressão que tive foi a de que isso combinava com o Pantera, controversa banda de thrash metal texana de forte impacto nos anos 1990, então escolhi essa trilha sonora para acompanhar o trabalho. Antes de iniciar a análise vale ressaltar que a obra de arte e o homem criador estejam ligados entre si por uma profunda relação, em reciproca interação, também não é menos verdade que não se explicam mutuamente.
Crânio e osso:
Esses dois elementos podem ser “linkados” com a questão da morte, muitas culturas utilizavam os ossos de seus ancestrais para cerimônias de diversas formas, na maioria em ritos de passagem, rituais que indicavam a mudança de estágio da pessoa para o outro e a presença do ancestral era para que tudo fosse realizado sob sua vigília e benção, retratando assim a conexão com as tradições, mitos e religiões do povo. Um exemplo típico dos rituais que envolviam a morte e os ancestrais estava no rito de passagem masculino, que em dado momento da vida, eles eram retirados do conforto de suas casas, e principalmente do conforto dado por suas mães por outros representantes da tribo, levados para uma caverna ou lugar distante, onde passavam por situações muitas vezes dolorosas, onde lhes era ensinado os mistérios do mundo adulto e masculinidade, matava-se a criança para renascer homem, pronto para assumir o seu lugar junto ao seu povo. Entretanto a morte seria a transformação final para alguns, ou no mínimo um grande mistério, não à toa têm-se grande medo da morte e, do mesmo modo ela foi representada por navios piratas, avisos de perigo ou capas de disco de rock/heavy metal que assustavam e irritavam os pais.
A Serpente:
A imagem da serpente remonta a diversas mitologias, no gênesis bíblico ela aparece na árvore convencendo Eva a comer do fruto proibido, na mitologia nórdica a serpente Jörmundgander arqui-inimigo do deus Thor (com quem travará o embate último embate no juízo final), no caduceu do deus Hermes da mitologia grega etc. A serpente é um símbolo duplo da alma e da libido, os caldeus e árabes usavam a mesma palavra para serpente e vida, deixando evidente a ligação entre a correlação de significado um aspecto também captado no símbolo da medicina. Mas talvez a imagem mais figurativa para serpente esteja no Uroboros, aquela que engole sua própria cauda, formando um círculo cujo movimento infinito evoca a própria ideia de Deus, é também a união sexual em si mesma, a transmutação perpétua no qual a vida pode sair da morte ou a morte sair da vida, a energia cíclica e cósmica, o eterno retorno de Nietzsche ou a morte e ressurreição de Cristo.
O Fogo:
Na mitologia o fogo foi um elemento que tanto Prometeu quanto Lúcifer roubaram do mundo celeste para entregar aos mortais, feitos que garantiram punições em ambas as histórias. O fogo, elemento ativo e masculino, é um símbolo eminentemente dualista. Ele representa, simultaneamente, o poder de criar e de destruir a vida. Diversos cultos religiosos atestam as suas propriedades purificadoras, da África dos Bantos a Roma antiga. Os ritos desses cultos incluem desde a purificação da água até a cremação dos mortos. Igualmente ligado ao plano do sagrado é o poder de iluminação do fogo: há uma lamparina acesa na frente da Torá em toda sinagoga, e velas ardem sobre e ao lado do altar das igrejas católicas. Há uma contraparte diabólica para as chamas sagradas: é o fogo do inferno, que queima sem consumir. No plano mundano, esse elemento significa amor, cólera, a cor vermelha e a sexualidade.
O Rato:
Na mitologia hindu o rato simboliza os desejos, pois seria um animal voraz que come de tudo, além de comer demais e guardar os restos em sua toca (ou nos buracos), o animal representa a também mente que sempre deseja algo e nunca se sacia. Ainda na mitologia hindu, o rato é a montaria de Ganesha, representando o controle dos instintos pelo sábio. No Japão, o deus da sorte e riqueza Daikoku também tem o rato como seu companheiro. O rato representa uma imagem ctônica, do submundo, frequentemente associada à serpente e a toupeira. Na Ilíada Apolo Esminteu, o deus-rato, possui caráter duplo enviando doença (a peste) e a cura. Considerado ser impuro o rato escava as entranhas da terra, tem conotação fálica e anal, trazendo noções ligadas à riqueza, a avareza, fecundidade, atividade noturna e clandestina.
O Abutre:
O abutre é um devorador de entranhas, considerado pelos Maias um símbolo de morte, mas pode ser compreendido como um agente regenerador das forças vitais orgânicas contidas na decomposição, um purificador que garante o ciclo da renovação. No Egito representa o poder das Mães Celestes. Absorve os cadáveres e em troca dá a vida, novamente garantindo a renovação perpétua. A deusa-abutre egípcia Nekhbet era também a protetora dos nascimentos. Na tradição greco-romana tinha os poderes de adivinhação e nas Américas e África tinha ligação com a fertilidade e a abundância tanto no plano material quanto espiritual.
A Noite:
A noite no yin yang é associado ao feminino, ao frio, a umidade e as emoções, sendo o lado escuro da dialética. Acreditavam os gregos que a noite era filha do caos e mãe do Céu e da Terra, aquela que gera o sono e a morte, as angústias e sonhos. Os maias usavam o mesmo glifo para representar o interior da terra à morte e a noite. Encontramos na noite também o simbolismo do tempo das gestações, das germinações e das conspirações que irão desabrochar ao amanhecer do dia como manifestações de vida. Pode se manifestar como imagem do inconsciente que se libera através do sono com seu aspecto duplo: as trevas reinantes e preparação da chegada da luz que chegará com o dia.
A Lua:
A Lua simboliza os ritmos biológicos, e as fases da vida, pois ela passa regularmente por um ciclo de vida, uma vez que é um astro que cresce, diminui, desaparece e cresce novamente. Assim, a Lua está submetida à lei universal do devir, do nascimento e da morte, sendo a representação da passagem da vida para a morte, e vice-versa. A deusa grega Ártemis (Diana para os romanos) representa a lua é irmã gêmea de Apolo, o sol, (Febo para os romanos) e representa a caça, o parto, à natureza e a colheita era também protetora das cidades, dos animais selvagens e das mulheres. Já no hinduísmo, a lua representa a faceta transformadora de Shiva, que tem como emblema o crescente lunar e também a vida dos antepassados. Já entre os Maias, que adoravam o deus Sol, a deusa que representava a Lua era a sua consorte e o seu polo negativo. Entre os Incas, era simultaneamente deus das mulheres e consorte do Sol, de quem seria também irmã, tornando-se assim a deusa feminina e esposa incestuosa. Nas culturas etíopes, árabes e sul-arábicas, há uma inversão, Sol possui natureza feminina e a Lua traz uma natureza masculina, simbolizando a noite apaziguante e repousante. A Lua Cheia, o último estágio do seu ciclo antes de minguar novamente, geralmente aparece em torno do mistério, autores como Edgar Alan Poe exploram essa imagem para imprimir medo e suspense a seus contos, muitos também atribuem essa fase da Lua aos lobisomens e outras criaturas da noite.
A Montanha:
É associada aos deuses do sol, da chuva e dos trovões, e, no início tradições, a divindade feminina, a montanha era a terra e o feminino, com o céu, nuvens, trovões e relâmpagos como o seu macho fecundante. A montanha pode representar o centro da terra, um local sagrado, pico da montanha cósmica não é apenas o ponto mais alto na terra, é também o umbigo da terra, o ponto onde a criação teve seu começo, como no caso da cruz ou da Árvore Cósmica, a montanha sagrada é o ‘centro’ do mundo e possui um significado profundo, comum em todas as tradições, entre alguns exemplos está o monte Meru dos hindus, o Tabor dos israelitas, Himingbjor dos povos germânicos entre outros. Esse senso místico do pico também vem do fato de que o ponto de contato entre o céu e a terra, ou o centro através do qual o eixo mundo passa. Assim temos inúmeros temas mitológicos que associam as montanhas aos deuses, Moisés recebeu os Dez Mandamentos no Monte Sinai e os deuses gregos tinham sua moradia no Monte Olimpo.
Conclusão:
Assim contemplamos não mais apenas um cenário ameaçador, digno de quadrinhos de ação ou agressivas músicas de heavy metal, mas também um cenário de profundidade mística, cheios de imagens que revelam aspectos arquetípicos do inconsciente coletivo e da alma representado nas mitologias de povos ao redor do mundo. A composição do cenário retratada poderia ser o de um ritual de transformação, de uma fase da vida para a outra, de relação consigo mesmo através de aspectos ctônicos da alma, de separação de um mundo inicial confortável e regressivo para um mundo diferente no qual a libido pode ser canalizada para outro foco ou permanecer presa e submissa às forças regressivas do inconsciente, um esforço simbólico da alma em jornada heroica que busca transcender o limiar da morte para chegar a transformação, não atoa a agressividade latente nas imagens como um todo.
Referencias: JUNG, C.G.: O espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 2011. JUNG, C. G.: O Homem e seus Simbolos, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. JUNG, C.G.: Simbolos da Transformação, Petrópolis: Vozes, 1986. CAMPBEL, Joseph: As Máscaras de Deus. Mitologia Primitiva, São Paulo: Palas Athena, 2014. CHEVALIER, J.; GHEEBRANT, A. Dicionário de Simbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. Ensaios sobre o Simbolismo Mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1991. SILVEIRA, Nise da. O Mundo das Imagens. São Paulo: Ática, 2006.
Matheus Gansohr
Psicólogo Clínico
Análista Junguiano
CRP: 03/9456
Comments